Do apagão de 2001 à digitalização das redes: os caminhos da eficiência energética no Brasil

Debates do Fórum de Eficiência Energética, em Curitiba, mostraram avanços com Procel e PEE, mas também destacaram a necessidade de escala, qualificação e foco industrial para o futuro do setor
O apagão de 2001 marcou a memória do setor elétrico brasileiro. Durante meses, consumidores foram obrigados a cortar o uso de energia sob pena de multa, indústrias tiveram a produção reduzida e o país mergulhou em incertezas. Mais de duas décadas depois, o episódio ainda serve de alerta: usar a eletricidade de forma mais eficiente não é apenas uma questão ambiental, mas também econômica e estratégica. Foi com esse pano de fundo que o Fórum de Eficiência Energética, realizado em setembro em Curitiba (PR), reuniu governo, indústria e distribuidoras para discutir a trajetória do Brasil, os gargalos atuais e as perspectivas futuras. O encontro destacou que, embora programas como o Procel e o PEE tenham garantido avanços, o país ainda precisa dar escala e transformar a eficiência em política de Estado. Do apagão ao debate atual A crise de 2001 não surgiu do nada. Antes dela, o país já havia enfrentado grandes blecautes, como o de 1985, que deixou 30 milhões de pessoas sem luz no Sudeste e no Centro-Oeste, e o de 1999, que atingiu 76 milhões de brasileiros após uma descarga elétrica em Bauru (SP) derrubar 60% da carga nacional. Esses episódios expuseram a fragilidade do sistema, altamente dependente das hidrelétricas, e acenderam o alerta para a necessidade de medidas permanentes. Em julho de 2000, foi sancionada a Lei 9.991, determinando que distribuidoras destinassem 0,5% da receita operacional líquida a programas de eficiência energética e pesquisa. Mas sua efetivação só ocorreu em meio ao racionamento de 2001, quando o governo publicou o Decreto 3.867, regulamentando a lei e garantindo recursos estáveis para projetos na área. “Essa regra trouxe previsibilidade ao financiamento e colocou o Brasil em um patamar diferenciado em relação a outros países da América Latina, que não têm nada estruturado em eficiência energética. Foi essa política que ajudou a mitigar os efeitos do apagão”, lembrou Paulo Pereira, da 5EC Engenharia, durante o Fórum em Curitiba. Desde então, a eficiência energética tem avançado de forma irregular. Jorge Kammler, presidente da AFABEE, recordou a mobilização de 2020 contra a Medida Provisória 998, que retirava recursos do setor. “Foi preciso a união das entidades para evitar que a política fosse desmantelada”, afirmou. Mesmo assim, R$ 822 milhões foram desviados para o enfrentamento da pandemia, resultando, segundo cálculos apresentados no encontro, em prejuízo superior a R$ 10 bilhões. “A eficiência energética precisa ser considerada política de Estado, não recurso a ser cortado em momentos de crise”, reforçou Kammler. Programas em andamento e impacto na indústria No Fórum de Eficiência Energética, em Curitiba, especialistas explicaram como funcionam os principais instrumentos de financiamento da área. Pela regra da Lei 9.991, 0,5% da receita líquida das distribuidoras é destinado à eficiência energética, sendo 0,1 ponto percentual para o Procel (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica), coordenado pelo governo federal, e 0,4 pontos para o PEE (Programa de Eficiência Energética da Aneel), implementado pelas distribuidoras. O Procel concentra ações nacionais, como programas de capacitação, certificação e apoio tecnológico. De acordo com George Soares, coordenador do programa, os resultados têm sido expressivos. “Com menos de R$ 100 milhões investidos, conseguimos gerar uma economia equivalente ao consumo de 12 milhões de residências e evitar um custo de R$ 4 bilhões para o sistema”, afirmou durante o evento. Entre as iniciativas estão o Selo de Eficiência em equipamentos e edificações, o Procel Reluz, que moderniza a iluminação pública, e o EnergIF, que instala laboratórios em Institutos Federais. Mas a execução não é uniforme: em uma chamada para prédios públicos de energia quase zero, nenhum projeto foi inscrito nas regiões Norte e Centro-Oeste. “Isso evidencia a falta de profissionais qualificados nessas áreas”, disse Soares. Já o PEE, gerido pela Aneel e executado diretamente pelas distribuidoras, financia projetos regionais de eficiência. Apenas na Copel, no Paraná, são 119 iniciativas em andamento, segundo o supervisor José Arthuro Teodoro. Os benefícios vão além da economia direta: o programa contribui para postergar investimentos em novas linhas de transmissão, mitigar picos de carga, reduzir emissões de gases de efeito estufa e até combater a pobreza energética. O retorno econômico também foi ressaltado no Fórum. Uma nota técnica citada por palestrantes mostra que cada R$ 1 investido em eficiência gera R$ 12,66 de retorno para a sociedade. Ainda assim, a distribuição dos recursos provoca críticas. “A indústria representa até 40% do consumo e recebe apenas 5% dos recursos do PEE. É necessário direcionar onde o resultado é maior”, afirmou Ricardo Kenji, diretor da Eletron S.A. Casos práticos apresentados no encontro reforçaram esse ponto. A IPEL Papel, de Santa Catarina, investiu R$ 943 mil na substituição de válvulas por inversores de frequência em motores, com apoio do PEE. O projeto gerou economia de 1 GWh por ano — suficiente para abastecer 500 residências — e evitou 80 toneladas de CO₂. “A economia ao longo de 18 meses será revertida à distribuidora Celesc para cobrir o custo do projeto. Depois disso, todo o ganho será da indústria”, explicou Maicon Martins, engenheiro da empresa. Para Bruno Herbert, presidente da ABESCO, os números comprovam que a indústria deve ser prioridade. “Projetos industriais têm payback inferior a dois anos e retorno mensal de até 3%. Isso aumenta a competitividade da empresa e a sustentabilidade do sistema”, afirmou. O futuro: digitalização, armazenamento e resiliência industrial Se no passado a eficiência se apoiou em lâmpadas e motores, e hoje se traduz em automação e modernização, o futuro exigirá integração com digitalização, armazenamento e redes inteligentes. “Já investimos mais de R$ 7 trilhões no sistema elétrico, e o consumidor paga essa conta. Precisamos tornar o uso dessa infraestrutura mais eficiente, e o armazenamento é um caminho sadio para isso”, afirmou Júlio Omori, diretor da Copel Distribuição. Ele projeta um sistema com geração 100% renovável, mais de 20% distribuída, veículos majoritariamente elétricos, consumidores também como geradores e baterias em toda a cadeia. Para Herbert, a eficiência deve se conectar às grandes tendências globais, como a eletromobilidade e a mobilidade urbana inteligente. Já o governo aposta em novos instrumentos. Soares citou o Índice Malmquist, em teste em 100 indústrias, que busca medir comparativamente o desempenho energético. “Precisamos de indicadores claros para orientar e dar escala às ações”, afirmou. Na visão de Kenji, ajustes regulatórios serão decisivos: “O PEE nasceu para evitar apagões e só cumprirá seu papel na transição se priorizar projetos com maior impacto sistêmico”. Nesse horizonte, a eficiência não será apenas reduzir consumo, mas garantir qualidade, resiliência e previsibilidade em cadeias produtivas cada vez mais dependentes da eletricidade. Hoje, o consumidor brasileiro enfrenta em média 10 horas de interrupção de energia por ano, enquanto em países desenvolvidos esse número é de minutos. “O custo da falta de energia é várias vezes maior que o da tarifa. Com mais eletrificação, a exigência por qualidade será total”, complementou Omori.

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